Evolução do conceito de Estado

O professor E. Magnin[1] escreve no início do prefácio de seu livro L’État as seguintes linhas:

“Desde as origens do cristianismo, duas concepções antagônicas da autoridade e do Estado, uma baseada no naturalismo político, outra no idealismo, se debatem no seio da sociedade ocidental”.

Essas concepções do Estado naturalmente emanam de concepções filosóficas do homem, umas de fundo naturalista ou materialista, outras de fundo idealista ou espiritualista.

O cristianismo surge em plena decadência dum mundo profundamente impregnado de materialismo. E o Estado naturalista, materializado, domina despoticamente a vida social.[2]

Vinha de longe esse conceito. A autoridade dos patriarcas e dos chefes se impuseram aos povos agrícolas e nômades, a daqueles em um sentido mais de pátrio poder estendido da família à tribo, a destes decorrendo da habilidade ou valentia na guerra. Quando se fundam as cidades, passo grandioso para a civilização, divinizam-se os fundadores das cidades, os Cécropes, os Rômulos, e uma verdadeira onipotência estatal se estabelece sobre todas as coisas materiais e espirituais. A religião cai sob a égide do Estado. Os deuses, antes das cidades, terafins ou lares, eram deuses da família, deuses tribais, que, por extensão, se iam tornando deuses dum povo ou duma raça. O homem pertencia ao Estado pelo corpo e pela crença. Quando em uma brincadeira noturna, Alcebíades e alguns rapazes de Atenas mutilaram os deuses Hermes das esquinas, o caso teve mais aspecto político do que religioso. Todas as liberdades, as da vida particular, as de educação, as religiosas, estavam subordinadas à autoridade do Estado.

A onipotência do Estado é fruto das concepções naturalistas do homem e da sociedade. A onipotência do Estado esmaga a  liberdade moral do homem, o que é um atentado contra o livre-arbítrio. E o cristianismo o condena.

O mesmo naturalismo produz a primeira ideia do direito como resultado dum contrato social, ideia que, mais tarde, se projeta sobre a concepção do Estado e que já se observa entre os romanos. Entretanto, do fundo desse contrato brotam os primeiros vislumbres duma respeitabilidade humana, a qual se conceitua somente nos que gozam de privilégios inerentes a tal contrato. Essa qualidade respeitável é dada pelo título de cidadão romano. O próprio São Paulo o reclama na aurora do cristianismo, como prerrogativa de ordem moral: Civis romanus sum![3]

O direito romano, público ou privado, é exclusivista, nasce do povo romano e somente a ele se destina. Justifica o seu orgulho e o seu instinto predatório. E só se estende sobre o mundo, quando Roma se torna capital do mundo e o mundo se torna uma província romana.

O cesarismo do Estado romano se impõe onipotente, como o despotismo asiático dos antigos impérios. Ele engloba o soberano pontificado, como função do próprio Estado. A política domina a religião, ao contrário do que se passava na teocracia egípcia, em que a religião estava acima da política e a influenciava, dependendo o rei da escolha e inspiração sábia dos colégios técnicos sacerdotais.

Nem a religião, nem a filosofia, nem a ciência influíram ou modificaram até o cesarismo romano o conceito do Estado. Os deuses mitológicos caracteristicamente humanos, com vícios e virtudes, vivendo como os homens e no meio deles, dividindo-se em grupos rivais ao sabor das rivalidades de seus adoradores, descendo do Olimpo para comer, beber e amar, não tinham bastante divindade para influir nas almas e, através delas, na vida social e no Estado. Em Roma, como acentuam as críticas de Tertuliano e Santo Agostinho, esses deuses se materializam, se multiplicam e se abastaram ao mais alto ponto. Há deuses para todos os objetos materiais, até para a dobradiça das portas; deuses para todas as funções do próprio corpo humano, mesmo as mais abjetas.

É a religião cristã, conquistando lentamente o império pela infiltração e pelo exemplo, irmanando na mesma vida espiritual os homens de todas as classes, elevando-os idealmente pela moral, que vem varrer a mitologia naturalista e influir com o seu idealismo profundo na concepção do Estado.

Deus agora é imaterial, transcendente, puro. Mesmo descendo à terra para salvar os homens, tomou a forma de homem, porém ficou divinamente puro. A religião não é mais desta ou daquela tribo, desta ou daquela cidade, deste ou daquele povo. É uma religião para as almas, isto é, para todos os homens, uma religião universal, que, respeitando os grupos naturais da família, das agregações e das pátrias, se estende sobre todos os indivíduos, cobrindo-os com o mesmo pálio de esperança.

Transformando os homens, o cristianismo transformou a vida social e transformou o Estado. No paganismo, a religião pertencia ao Estado. No cristianismo, o âmbito da primeira é um, o âmbito do segundo é outro. “A Deus o que é de Deus, a César o que é de César”. O Reino de Deus não é deste mundo; o reino de César é deste mundo. Mas o Reino de Deus engloba o reino de César e, embora este seja distinto dele, sobre ele projeta sua influência espiritual. César recebe o poder, porque Deus o permite, e deve exercê-lo de acordo com a moral que vem de Deus. É uma revolução formidável que se opera e um mundo novo que vai surgir das cinzas do mundo antigo. E ela se processa dentro do mais leal e profundo respeito aos princípios de ordem e autoridade.

Jesus Cristo, que viera derrubar a lei antiga e criar a lei nova, dera os primeiros exemplos, circuncidando-se em obediência aos preceitos daquela e respeitando no próprio Pilatos o poder que lhe viera de cima. São Paulo recomendara a submissão às autoridades superiores, porque toda autoridade provém de Deus. E Santo Agostinho concretizava a primeira doutrina cristã do poder, afirmando que a autoridade só podia vir de Deus, do mesmo modo que de Deus vinha a paternidade, devendo os homens, destinados à Cidade Celeste, se conformar com as leis da Cidade Terrestre e lhes obedecerem. “Mas, segundo comenta um mestre, se a autoridade tem direito à obediência, em virtude de sua origem divina, essa mesma origem lhe impõe deveres determinados e rigorosos”.

As aluviões de bárbaros submergiram o império. As espadas dos conquistadores germanos, eslavos e uralo-altaicos cortaram nas carnes das províncias imperiais monarquias e feudos. Uma anarquia sangrenta se espalhou pelo ocidente. Reis e barões disputam terras, senhorios, alódios e direitos. O banditismo campeou à solta. E só a instituição da servidão à gleba conseguiu fixar ao solo as populações andejas, permitindo, à sombra dos muros defensivos de cidades e castelos roqueiros, as primeiras estabilidades da sociedade medieval que se ia formando.

Do fundo dos conventos, abadias e mosteiros, onde se refugiaram o saber e a fé, saíram os clérigos ou esclarecidos que, rodeando os novos governantes, os foram adoçando, suavizaram-lhes os costumes, pregaram-lhes a religião, impuseram-lhes a moral e, aproveitando certas instituições do seu direito consuetudinário, casaram-nos com as romanas e o espírito cristão, codificando os primeiros Breviários e as primeiras Capitulares.

Abre-se o longo período da Idade Média que o judaísmo rotula como dez séculos de treva; mas que, em verdade, está cheio também de grandes clarões espirituais e em que cada centenário marcou uma etapa notável da civilização, apresentando características próprias. Somente a espiritualização do cristianismo o domina, chegando ao apogeu no século XIII, século das catedrais góticas, dos reis-sábios e dos reis-santos.

Santo Agostinho, durante os primeiros séculos, continua a inspirar as doutrinas relativas ao conceito do Estado. Nos famosos concílios da Espanha visigótica, Santo Isidoro de Sevilha não se cansa de afirmar o caráter sagrado da autoridade e de convencer os que temporariamente a exercem dos pesados deveres de seus cargos. A ambição dos soberanos, porém, procura sempre desrespeitar tais ditames e exorbitar de suas funções. Todas as lutas entre a Igreja e o Estado vêm desses pruridos de absolutismo dominador, até que, com a queda dos carolíngios, o feudalismo se sobrepõe à autoridade real e os nobres passam a governar mais do que os soberanos. A autoridade, dividida, se enfraquece e, enfraquecendo-se, torna-se cada vez mais arbitrária e mais violenta.

“Durante o período medieval em que a realiza progressivamente se vai libertando da tutela do feudalismo” — escreve Magnin — “isto é, do fim do século XI ao fim do século XV, o conflito entre a ideia naturalista do Estado e a ideia cristã continua, tomando mesmo, às vezes, uma forma aguda; porém a influência do Evangelho, sem ser sempre dominante, para o que muito falta, é profunda e bastante geral”.

A autoridade doutrinária de Santo Agostinho prossegue, modelando-se melhor: eleva-se a pessoa do soberano, mas identificando-a com a função que exerce; considera-se a soberania um dever antes de considerá-la um direito; entre o corpo social e o soberano há uma tal reciprocidade de direitos e deveres que formam um todo; o poder do rei tem limites e sua finalidade é o bem-estar moral e material dos súditos.

A sociedade feudal se espiritualiza com a cavalaria. O idealismo de sua fé sobreleva todo o naturalismo. E ela se volta inteiramente para Deus. É a época do teocentrismo. Todas as atividades, manifestações e organizações sociais buscam Deus, ascendem para Deus, e vêm de Deus. A sociedade medieval se preocupa com sua origem e sua finalidade: Deus a criara, Deus a dirigia e para Deus ela devia voltar. O homem fora criado por Deus, estava na terra para servir a Deus e no seio de Deus iria repousar de suas atribulações, quando a morte lhe fechasse os olhos, se houvesse sabido cumprir seus deveres de homem.

Sua arte, sua ciência, seu Estado, sua economia, tudo o que é seu visa Deus e em Deus se inspira. O estilo arquitetural denominado gótico mostra o esplendor dessa inspiração e dessa ascensão. As catedrais se atiram para o céu como uma ânsia de pedra, uma cristalização de aspirações para atingir o divino. Na pintura, as figuras se adelgaçam e alongam, se espiritualizam, ganhando em roupagens diáfanas o que perdiam em materialidade corpórea. Vede-as ainda em Fra Angélico e em Botticelli. As ciências divididas no trivium e no quadrivium,[4] escalonavam-se das que tocavam nas cousas materiais à teologia, que tocava nas cousas divinas. O Estado se alicerçava no direito divino,[5] maravilhosa e lógica concepção cristã. O poder — afirmam os escolásticos — é uma necessidade natural da sociedade. Todas as necessidades naturais foram criadas por Deus, Criador da Natureza. Assim, o poder vem de Deus e deve inspirar-se em Deus. É divino na sua essência e confiado como um munus publicum[6] ao que o exerce, com a transitoriedade das cousas humanas, para dele fazer bom uso no serviço dos homens e no serviço de Deus. Eis por que os verdadeiros reis e não os tiranos se intitulavam, como aquele de Portugal, “procurador dos descaminhos do reino”.[7] Divinizar a pessoa real, como se tentou mais tarde, é ir de encontro a essa doutrina e recair no paganismo.

A doutrina idealista cristã do Estado, que nasce com a sentença de Jesus: “A Deus o que é de Deus e a César o que é de César”, e com a sua resposta a Pilatos, no Pretório; que se consubstancia com Lactâncio, Santo Agostinho e Santo Isidoro de Sevilha, atinge seu apogeu da Idade Média, na obra imortal de Santo Tomás de Aquino. Civitas est totum. O Estado é um todo, isto é, uma síntese espiritual, moral, política e econômica. O espiritualismo cristão triunfa na amplitude do teocentrismo medieval. Uma moral severa rege a economia corporativa.

Mas o velho naturalismo romano-pagão não estava morto. Ele florescera e frutificara no Império Bizantino, separado por um cisma da obediência espiritual ao Papa, onde a autoridade temporal se sobrepunha à espiritual, como se viu muitas vezes e sobretudo na questão dos iconoclastas, em um cesarismo-papismo. Dentro desse cesarismo-papismo, o autocrata era também um sumo-sacerdote. Sem uma polegada de ferro desembainhado, os Papas romanos haviam imposto aos soberanos revés do Ocidente uma disciplina moral em nome de Deus. Um Roberto o Piedoso, um Sancho, um Henrique IV da Alemanha sentiram o peso da autoridade do Vigário de Cristo. Bizâncio escapara a ela e se orientalizara no culto ao materialismo do ouro e do poder.
Quando invenções e descobrimentos alargaram as fronteiras do mundo e os homens se espraiaram por novas terras, vendo novos horizontes e conquistando novas riquezas, o Estado totalitário medieval sentiu que a sua rígida moldura moral estalava e ia partir-se. O triunfo sobre os mares tenebrosos e nunca dantes navegados, a vitória sobre povos bárbaros, a vida de aventuras nas selvas, serranias e planuras dos sertões ignotos trazem um transbordamento de energias individuais difíceis de conter e que se afirma na pujança dos personalismos. Ao mesmo tempo, naufraga a arca das tradições bizantinas sob o dilúvio otomano, com a tomada de Constantinopla, cujo espírito busca refúgio no Ocidente.

É a época chamada do Renascimento, porque nela renascem as formas da vida pagã mortas pela Idade Média. O homem começa a se esquecer de Deus e a se voltar para a Humanidade, que ele vê forte, audaz e altiva, devassando os oceanos ou, calçada com as botas de sete léguas dos bandeirantes, perlustrando os continentes desconhecidos. Ao teocentrismo sucede o antropocentrismo em tudo. Tudo o que era divino passa a ser humano. A filosofia é humanista; as ciências são humanidades. O humanismo domina as formas da pintura, da escultura e da arquitetura. Há nelas uma grandeza, ainda, mas é uma grandeza humana. Perdeu-se a grandeza divina do gótico. As Madonas são rechonchudas e coradas. Os Bambinos e os anjinhos ganhariam prêmios de saúde em concursos de robustez infantil. Na Idade Média, ao poema de pedra das catedrais Dante replicara com a Divina Comédia, penetrando no mundo dos espíritos, descendo ao inferno e subindo ao céu. O poema que melhor exprime o Renascimento não é mais uma comédia divina, é uma epopeia humana, Os Lusíadas, os heróis lusos. Estes eram eminentemente cristãos, levavam a cruz da ordem militar de Cristo sangrando nos traquetes das caravelas, ouviam missa nas praias descobertas, em presença dos selvagens nus, impunham a cada terra nova que achavam um padrão de pau ou de pedra, com a cruz, ou lhe davam o nome de Vera ou de Santa Cruz. Entretanto, a gesta camoniana, que canta os feitos daqueles “a quem Netuno e Marte obedeceram”, mal fala de Jesus e da religião cristã, porém move todos os deuses do antigo Olimpo, preocupados com as façanhas do Gama e dos portugueses.

Esse naturalismo humanista se reflete no domínio religioso com a heresia da Reforma e seu consequente livre-exame, quebrando a unidade do pensamento religioso do Ocidente; reflete-se no domínio político com a nova concepção do Estado, que se delineava já desde as Investiduras e as querelas entre o Papado e o Império ou entre o Papa e Filipe o Belo, através das universidades italianas e francesas. É uma concepção naturalista, que ressurge, de acordo com essa época de ressurgimento paganizante, velhos textos do direito romano que sagram o soberano como a fonte do próprio direito: Quidquid principi placuit legis habet vigorem.[8]

O absolutismo monárquico vai ser o resultado dessa revolução nas ideias ocidentais. Deus não cria mais nem inspira mais o Estado. Este é criação humana e o primeiro de seus homens, o rei, é o criador do Direito. Acima de sua vontade, nada. E ele próprio escapa às leis: Princeps legibus solutus.[9] Divinização pagã do soberano.

Não é mais a moral que dirige o Estado, pautando os atos dos soberanos como São Luís; porém é a chamada razão de Estado, a qual pode estar muitas vezes em desacordo com a moral. Daí as ideias que vêm abrolhar no maquiavelismo do Príncipe. Apesar das reações espiritualistas contra o absolutismo pagão, materialista, ele se desenvolve e atinge o ápice com Luís XIV, quando o Estado se personaliza no rei: L’État c’est moi.[10]

A reação espiritualista contra o absolutismo abriu caminho à reação do naturalismo enciclopédico. Bossuet[11] anuncia Rousseau. O século XVIII afasta-se ainda mais de Deus do que o Renascimento. Ele abandona a Humanidade e passa a ver tudo pelo critério do homem isolado, do indivíduo. Seu Estado tem de ser feito para o indivíduo, para o bem do indivíduo, para a felicidade do indivíduo. Que se destruam a ordem antiga, os resíduos medievais que resistiram ao absolutismo, o grupo natural decadente da corporação! Tábula rasa para dar a todos as liberdades individuais de pensar e de agir. Derramaram-se rios de sangue para se rebaixar cada vez mais o critério fundamental da sociedade: de Deus passara-se para a Humanidade; da Humanidade se passa para o Homem individualmente.

A reunião dos indivíduos forma uma vontade geral e essa cria o Estado. Esse consenso geral é a fonte de tudo: da soberania, do direito, das leis e da moral. Dessa vontade geral resulta o contrato social. Aí está o conceito do Estado Liberal. É agnóstico em matéria religiosa, a qual pertence ao foro íntimo de cada um. É abstêmio em matéria econômica, a qual depende das leis naturais e com a qual só a iniciativa particular tem o que ver. Sua soberania é meramente política e administrativa, pois que só nesse sentido se exerce, pelo voto, a vontade geral.

Rousseau reconhece que a religião sempre serviu de base ao Estado e por isso quer que certas verdades religiosas sejam impostas sob a forma de religião civil. Os teoristas da Revolução Francesa procuraram institui-la com a Deusa Razão e a festa do Ser Supremo. A religião da Humanidade de Comte mamou o leite de Rousseau…

Influindo poderosamente na Revolução Francesa, o pensamento político de Rousseau influiu poderosamente no conceito do Estado liberal durante todo o século XIX. O naturalismo democrático é seu filho dileto. Não conseguiu vencê-lo o naturalismo antidemocrático hegeliano em que a onipotência estatal esmaga o indivíduo. No liberalismo, a onipotência individual é que esmaga o Estado. O comunismo não se prende a Hegel somente pela dialética transformada, mas por essa esmagadora onipotência do Estado.

Da filosofia naturalista, materialista do século XVIII decorrem, além da concepção liberal do Estado, dois conceitos mais, diferentes na aparência e na manifestação, idênticos no processo e na essência, o positivista e o comunista. O positivista não se pretende, em teoria, organizar e unificar politicamente Estados, mas sim a Humanidade, o Grande Ser que habita a Terra, o Grande Feitiço. Deus está, pois, radicalmente eliminado. Prega a necessidade das “pequenas pátrias”. A Ditadura Científica, exercida, como o nome indica, pelos sábios, num Estado republicano, até que os homens estejam tão instruídos e moralizados, que não precisem mais de governos, governem-se por si, levará à extinção definitiva do Estado. O comunismo também não visa nações separadamente na sua organização e sim todo o mundo proletário, unido pelo famoso grito de Karl Marx. Nesse internacionalismo, não há lugar para as pátrias. Nega Deus e afirma a fatalidade das causas e efeitos naturais sob o nome de determinismo. A Ditadura Proletária, na república soviética, será, como preceitua Lênin, um “corredor de passagem” que levará os homens a uma situação ideal de igualdade absoluta, sem classes, sem Estado. Como se vê, ambas as doutrinas são internacionais e ambas destroem as pátrias, fragmentando-as ou dissolvendo-as; ambas são teístas: o positivismo, porque elimina a cogitação da existência de Deus; o comunismo, porque o nega peremptoriamente; ambas preconizam uma ditadura, em forma republicana, transitória, o positivismo, a de cima, da elite, o comunismo, a de baixo; ambas serão coroadas pela anarquia, isto é, a extinção do Estado; enfim, ambas promanam do mesmo preceito rousseauniano: “cada homem deve ser seu próprio legislador e seu próprio pontífice”.

O homem é o material básico com que se forma o Estado. Todo conceito de Estado resulta dum conceito de homem. Se se considerar no homem unicamente sua alma, seu espírito, se se considerar somente o homo sapiens, o homem nas suas relações com o Reino de Deus, sobre esse homem só se poderá construir uma teocracia pura, um Estado teocrático. Se se considerar no homem unicamente sua razão, sua vontade, se se considerar somente o homo civicus, o homem nas suas relações com o poder público, sobre esse homem só se poderá construir um Estado liberal-democrático puro. Se se considerar no homem unicamente seu corpo, suas necessidades materiais, o estômago e o sexo, se se considerar somente o homo economicus, sobre esse homem só se poderá construir um Estado comunista.

Vindo após todas essas doutrinas, enriquecido pela experiência e pelo saber acumulado até o século XX, o Integralismo verifica que, em cada doutrina dessas, há um pedaço da verdade e que o seu erro fundamental é querer impor esse retalho de verdade como verdade inteira. O homo sapiens existe, mas não sozinho. O homo civicus existe, mas não sozinho. O homo economicus existe, mas não sozinho. Une-os uma interdependência. Isolá-los é desvirtuar, deformar a figura do homem, que só se pode compreender na visão de conjunto das três modalidades. Assim, o homem verdadeiro é o Homem Integral: espírito-razão-matéria; espiritual-cívico-econômico. Sobre esse homem se deve construir um Estado Integral: espiritual na afirmação de Deus, da liberdade e da dignidade da pessoa humana; racional na sua feição hierárquica e disciplinada; material na sua organização econômica.

Dirão os fariseus, praga de todos os tempos, que isso é um ecletismo, englobando teocracia, liberalismo e comunismo. Absolutamente não. Ecletismo é mistura e o Estado Integral é uma combinação. Quando em química se misturam dois ou mais corpos, eles se confundem aparentemente, mas conservam suas características específicas. Quando se combinam, perdem esses característicos e dão origem a um corpo novo, inteiramente diferente dos que o formaram. Por algumas moléculas de hidrogênio e oxigênio, na proporção requerida, faça-se passar uma faísca elétrica e se terá a água, completamente diversa dos corpos que a formaram.

Na luta secular do materialismo e do espiritualismo em torno do homem, do naturalismo e do idealismo em torno do Estado, o Integralismo vem dar a última palavra, mostrando que o homem não é só matéria, só razão ou só espírito, porém espírito, razão e matéria, com a predominância daquele sobre estas, mas sem o esquecimento destas; que  o Estado não deve ser somente natural, racional ou ideal, porém ideal, racional e natural, com a predominância do ideal, mas sem o esquecimento do natural e do racional.[12]

Esta concepção completa as outras concepções, do mesmo modo que o século XX completa os outros séculos; é uma síntese do homem e uma síntese do Estado, do mesmo modo que o século XX é uma síntese dos outros séculos.

Autor: Gustavo Barroso. Retirado de “Panorama”, Fevereiro de 1936. págs. -3-4-5-6-7-8-9-10-11.

RECOMENDAÇÕES DE LEITURA:

As Bases do Pensamento Novo

Estado Totalitário e Estado Integral

Notas:

[1] Padre Étienne Magnin (1880-1940), historiador e canonista francês, dedicou-se ao ensino dos princípios políticos católicos. 
[2] Sobre os caracteres e a transição da civilização pagã e do Estado romano à civilização medieval e ao Estado cristão, veja-se o livro O Quarto Império (1935), do autor. 

[3] Expressão dita com orgulho por quem buscava ressaltar os privilégios de sua cidadania romana. Do latim, “sou um cidadão romano”.

[4] São as sete artes liberais, modelo de educação herdado da cultura greco-romana e codificado durante o império de Carlos Magno. Eram a base da educação medieval. O Trivium estrutura o estudo em três pilares: Lógica, Gramática e Retórica. O Quadrivium, em quatro: Aritmética, Música, Geometria e Astronomia. As sete artes liberais são, atualmente, ministradas por escolas especiais. 

[5] Escreve Gustavo Barroso, em seu prefácio a Olímpio Mourão Filho, Do Liberalismo ao Integralismo (1935): “O poder, como necessidade natural, vem do Criador de todas as coisas naturais, de Deus. É, pois, divino na sua essência, embora passageiramente o exerça este ou aquele homem. Já Nosso Senhor dissera, dirigindo-se a Pilatos: “Não terias nenhum poder sobre mim, se ele não te viesse de Cima”… Mais tarde, quando se considera o direito divino pessoal dos soberanos, se está fora da doutrina da Igreja, em pleno neopaganismo do Estado”. 

[6] Do latim, expressão que indica dever público, encargo público, ônus público. O poder é uma responsabilidade, não um gozo. 

[7] Título dado pelas Cortes Gerais do Reino a Dom João IV, O Restaurador, Rei de Portugal a partir de 1640, com a independência da União Ibérica. 

[8] Máxima de Ulpiano. Do latim, “o que agrada ao príncipe tem força de lei”. 

[9] Idem. Do latim, “o príncipe está livre das leis”. 

[10] Escreve Gustavo Barroso, em seu livro O Integralismo de Norte a Sul (1934): “A grande desgraça do mundo foi o cisma entre a política e a moral”. E em O Quarto Império (1935): “O absolutismo a que se entregaram os soberanos, superpondo-se a toda e qualquer autoridade moral e espiritual, foi uma revolução que antecedeu e permitiu abrolhasse a Grande Revolução preparada nas trevas. Porque, em se tornando absolutos, encarnações pessoais e pagãs do Estado, os reis romperam aquele pacto multissecular com os seus povos, os liames de obediência aos preceitos morais do Cristianismo e o dever de humildade perante Deus. Rompendo-os, buscaram o apoio da chamada Razão de Estado, duma ideia abstrata e volúvel, pois a razão que impera hoje já não impera amanhã. É a razão do arbítrio, desde que a não limita um cânone moral”. 

Do francês, “o Estado sou eu”. 

[11] Jacques Bossuet (1627—1704), bispo e teólogo francês, principal pensador católico do absolutismo.

[12] Escreve Gustavo Barroso, em seu prefácio a Olímpio Mourão Filho, Do Liberalismo ao Integralismo (1935): “Desde que o mundo é mundo, [as sociedades] têm flutuado entre os espiritualismos puros e os naturalismos puros, quando os não misturam, construindo Estados unilaterais ou mistos como as concepções que o geram, em eternas situações de equilíbrio instável que só se resolvem por meio de guerras e revoluções. É necessário que os céus se abram, como no milagre de Betabara-Betânia, e o Espírito Divino baixe das Alturas a unir os extremos, os polos afastados, as esquerdas e as direitas, numa integralização definitiva de valores”.

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